sexta-feira, 2 de março de 2012

Sentença autorizando o registro civil com dupla paternidade

ESTADO DE PERNAMBUCO
PODER JUDICIÁRIO



JUÍZO DE DIREITO DA 1ª VARA DE FAMÍLIA E REGISTRO CIVIL DA COMARCA DO RECIFE






PROCESSO DE INDICAÇÃO DE PATERNIDADE

REQUERENTES: M.A.A. e W.A.A.







SENTENÇA








                                                          Vistos etc.







M.A.A. e W.A.A., amplamente qualificados nos autos, ingressam com pedido de abertura da jurisdição administrativa deste Juízo de Família e Registro Civil, postulando o assentamento civil, com a indicação da paternidade, da criança M.T.A.A., nascida em 29/01/2012, concebida a partir de inseminação artificial heteróloga, gerada em útero de substituição, com utilização de material genético do primeiro requerente e de óvulo doado por mulher não identificada, para fazer constar o nome de ambos na qualidade de pais.



A menor M.T.A.A. está sob a guarda dos requerentes, os quais vivem em união homoafetiva - recentemente convertida em casamento civil - há mais de 15 (quinze) anos, conforme faz prova Certidão de Casamento por eles apresentada.



A concepção da infante se deu através da fertilização in vitro no útero de substituição de A.L.S., a qual atestou, mediante Escritura Pública de Termo de Consentimento, sua livre participação na gestação em substituição, a partir de doação de óvulo proveniente de banco de armazenamento, reconhecendo a dupla paternidade dos requerentes em relação a menor.



À petição, agregaram os seguintes documentos: Declaração de Nascido Vivo nº 30-56830128-7; Certidão de Casamento; Termo de Consentimento, por instrumento particular e público; Declaração do Centro de Reprodução Humana; Resolução CFM nº 1.957/2010, e seu Anexo Único (Normas Éticas para a Utilização das Técnicas de Reprodução Assistida); Relatos colhidos na internet sobre casos ocorridos anteriormente; Cópia de decisão judicial, em situação análoga, onde duas mulheres (a genitora e sua companheira) obtiveram autorização judicial para registro de uma criança.



Pronunciando-se nestes autos, o representante do Ministério Público, opinou favoravelmente ao pedido dos requerentes, na esteira de seu parecer colacionado às fls. 27/40, que esgotou com preciosismo as questões marginais e nucleares do presente feito, tornando despiciendas quaisquer delongas que frustrem a análise do ponto de maior pungência contido nesses autos – a luta pelo reconhecimento de direitos dos casais homoafetivos, notadamente, a homoparentalidade[1].



Findo este breve histórico da causa, principio meu julgamento.



Assentada uma sintética narrativa dos fatos que sedimentam este processo de indicação de paternidade, utilizado como ferramenta processual de abertura da jurisdição administrativa deste Juízo de Família e Registro Civil, e não havendo qualquer questão processual a solver, passo ao esquadrinhamento da questão nuclear do pedido.



O objetivo deste feito administrativo é a abertura do assentamento de nascimento da menor M.T.A.A., concebida através de uma reprodução assistida heteróloga, na condição de filha dos requerentes, ambos do sexo masculino.



Principiando minha convicção, começo por aclarar que o caso revelado pelos meandros destes autos, diz respeito à possibilidade da configuração da homoparentalidade mediante a chancela judicial, circunstância a particularizar e impingir relativo ineditismo ao caso em julgamento.



Pelas frestas dos presente autos, se percebe a busca de dois cidadãos à fruição de direitos basilares, constitucionalmente albergados, e, à devida tutela estatal à nova formatação de entidade familiar e, em especial, de seus consectários, in casu, o direito à homoparentalidade.



Nota-se que os requerentes, os quais mantém uma relação homoafetiva há mais de 15 (quinze) anos, buscam converter um vínculo precário, em que, teoricamente, apenas um dos requerentes poderia ter a paternidade reconhecida com base na consanguinidade, para um vínculo institucionalizado, no qual os dois requerentes poderão ter a paternidade simultaneamente reconhecida, com alicerce na afetividade e na aplicação da mais moderna hermenêutica jurídica.



Em suma, o que se busca, à míngua de legislação específica, é dotar de caracteres jurídicos uma realidade fenomênica, que, saliente-se, não se restringe ao caso dos autos, pulverizando-se, dia a dia, na nossa teia social.



Daí surge a necessidade de um acurado procedimento hermenêutico, baseado numa interpretação pluralista e aberta dos ditames constitucionais e infraconstitucionais.



Numa sociedade democrática, na qual o pluralismo e a convivência harmônica dos contrários devem subsistir, não há espaço para prevalência de normas jurídicas que conduzam a interpretações polissêmicas e/ou excludentes dos direitos de minorias, como se dá no bojo das normas que restringem a legitimação estatal às relações puramente heteroafetivas.



A compreensão literal de tais dispositivos criará, com efeito, uma odiosa e confinante marginalização social de pares, que acabará por estrangular a democracia e, via oblíqua, o próprio Estado Pluralista de Direito.



Diante desse estado de coisas, o Poder Judiciário, no exercício de sua função de intérprete da lei, deve estar atento ao ruído (quiçá estrondo) das marchas sociais; ciente que “interpretar um ato normativo nada mais é do que colocá-lo no tempo e/ou integrá-lo na realidade social, na dicção brilhante do constitucionalista alemão Peter Häberle.[2]



Ao revés das incompreensíveis resistências sociais e institucionais, que se fundam em dogmatismos ultrapassados, me perfilo ao entendimento de que, qualquer dispositivo de lei que venha a constituir embaraço à plena fruição dos direitos fundamentais dos cidadãos, deva ser abolido do sistema jurídico vigente, por intermédio de um acurado procedimento hermenêutico, ou seja, através de uma interpretação pluralista e aberta dos dispositivos constitucionais que guardem correspondência com os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito.



É justamente isso que fizeram os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em recente decisão, proferida em 05 de maio de 2011, e que vem sendo apontada como indutora da catálise de entendimentos e avanços sobre a temática da homoafetividade em nosso país, tendo em vista sua natureza abrangente, justíssima e caudatária (dotada de eficácia contra todos e efeito vinculante - art. 102, § 2º, CF/88).



Na dita decisão, prolatada na sede da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132, convertida na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.277, os ministros daquela Corte, reconheceram, por unanimidade, a existência de mais um tipo de entidade familiar - a união de pessoas do mesmo sexo - e, via de consequência, reconheceram os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis àqueles que optam pela relação homoafetiva.



Anote-se que a aludida decisão se reveste de um duplo efeito.



A um, para reconhecer a existência de mais um tipo de entidade familiar: o da união de pessoas do mesmo sexo.



A dois, e é esse o ponto de destaque, para estender os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis àqueles que optam pela relação homoafetiva.



Antecipadamente, busco, de logo, rechaçar as críticas que possam advir desse posicionamento, oriundas daqueles que têm assacado o Judiciário sob o argumento de que este Poder tem extrapolado suas atribuições constitucionais, lembrando-lhes que toda a construção legal acerca da homoafetividade, hospedada no direito de família no Brasil, tem origem pretoriana.



Instados a decidir nos casos concretos, cabe a nós magistrados, darmos um tratamento arqueável as normas jurídicas, amoldando-as aos fatos sociais em que se afigura a omissão legislativa plena, como se dá em relação à homoafetividade.



A lei, na maioria dos casos, veio a posteriori, na tentativa, por vezes tardia e inócua, de adequar a norma no tempo ou integrá-la ao fenômeno social, por essência, ultra dinâmico.



Embora relegado à míngua legislativa, em razão das incompreensíveis resistências sociais e institucionais, fundadas em dogmatismos seculares, configura-se uma realidade que o Judiciário não pode ignorar.



Corroborando este entendimento, cumpre-me transcrever excerto do voto do Ministro do STJ, Luís Felipe Salomão, no julgamento do REsp n 1183378/RS, publicado no DJe em 01/02/2012, que afastou a existência de qualquer normativo infraconstitucional suficiente a invalidar o casamento homoafetivo e discorreu sobre o papel do Judiciário na supressão das lacunas legislativas:

           

“Não obstante a omissão legislativa sobre o tema, a maioria, mediante seus representantes eleitos, não poderia mesmo ‘democraticamente’ decretar a perda de direitos civis da minoria, pela qual eventualmente nutre alguma aversão. Nesse cenário, em regra é o Poder Judiciário - e não o Legislativo - que exerce um papel contramajoritário e protetivo de especialíssima importância, exatamente por não ser compromissado com as maiorias votantes, mas apenas com a lei e com a Constituição, sempre em vista a proteção dos direitos humanos fundamentais, sejam eles das minorias, sejam das maiorias.



Dessa forma, ao contrário do que pensam os críticos, a democracia se fortalece, porquanto esta se reafirma como forma de governo, não das maiorias ocasionais, mas de todos.”



Nessa toada, enquanto o Congresso Nacional, no caso brasileiro, não assume, explicitamente, sua coparticipação nesse processo constitucional de defesa e proteção dos socialmente vulneráveis, não pode o Poder Judiciário demitir-se desse mister, sob pena de aceitação tácita de um Estado que somente é ‘democrático’ formalmente, sem que tal predicativo resista a uma mínima investigação acerca da universalização dos direitos civis.”



No cenário dos autos, vê-se uma entidade familiar, na qual os requerentes se reconhecem como homossexuais e almejam exercer, conjuntamente, a função de pais de uma criança, fenômeno que vem sendo denominado pela doutrina moderna de homoparentalidade1.





Acrescente-se ao quadro o fato de que, mediante planejamento conjunto, os parceiros optaram pelo acesso à homoparentalidade através do uso das novas tecnologias reprodutivas (inseminação artificial heteróloga) para formar uma família, sendo certo que a afetividade, desde o nascimento vem sendo exercida pelos dois, malgrado apenas um deles ser o pai biológico.





A pequena M.T.A.A., desta feita, do ponto de vista estritamente biológico, é filha de M.A.A., mas afetivamente, o é, igualmente, de W.A.A. – que compartilhou com seu marido todas as agruras e benesses, que envolveram o sonho mútuo deste casal em trazer ao mundo um rebento, suportando, inclusive, as responsabilidades materiais e emocionais advindas desse processo.



Volvendo-me às pesquisas e estudos oficiais sobre a homoparentalidade, que vêm sendo realizados ao redor do mundo há mais de 30 (trinta) anos, encampados por profissionais de múltiplas áreas do conhecimento, como a Psicologia, Antropologia, Psiquiatria, Pediatria, Serviço Social e do próprio Direito, temos que nenhum prejuízo à criança foi observado, sob o ponto de vista de sua saúde psíquica, estabilidade emocional, capacidade de adaptação ao meio, enfrentamento do estigma, desenvolvimento da identidade de gênero, orientação sexual, dentre outros aspectos.



As pesquisas demonstram, ainda, não haver diferenças significativas entre o desenvolvimento de crianças criadas por famílias heterossexuais, comparadas àquelas criadas por famílias homossexuais. Assim não poderia ser diferente, posto que não é o sexo dos pais/mães que irá configurar-se como fator de preponderância ao bom desenvolvimento da criança, mas a qualidade da relação que aqueles conseguem estabelecer com esta.[3]



No que atine aos pais/mães homoafetivos, o resultado geral das pesquisas realizadas por diversos autores indicam a inexistência de diferenças em relação à habilidade para o cuidado dos filhos e à capacidade parental de pessoas heterossexuais e homossexuais. Vejamos excerto conclusivo de pesquisa realizada pela American Psychological Association (APA):



(...) não há um único estudo que tenha constatado que as crianças de pais homossexuais e de lésbicas teriam qualquer prejuízo significativo em relação às crianças de pais heterossexuais. Realmente, as evidências sugerem que o ambiente promovido por pais homossexuais e lésbicas é tão favorável quanto os promovidos por pais heterossexuais para apoiar e habilitar o crescimento “psicológico das crianças”. A maioria das crianças em todos os estudos, funcionou bem intelectualmente e “não demonstrou comportamentos egodestrutivos prejudiciais à comunidade”. Os estudos também revelam isso nos termos que dizem respeito às relações com os pais, autoestima, habilidade de liderança, egoconfiança, flexibilidade interpessoal, como também o geral bem-estar emocional das crianças que vivem com pais homossexuais não demonstravam diferenças daqueles encontrados com seus pais heterossexuais.” (WALD;  REYNOLDS, 1992).



Refletindo no campo hipotético, sob o olhar daqueles que, de maneira radical, rechaçam a possibilidade da criação de menores por casais homoafetivos, alegando a eventual ocorrência de dano psíquico às crianças inseridas neste contexto familiar, tenho que, no meu sentir e valendo-me do senso comum, que tal prejuízo, revela-se, em verdade, àqueles submetidos a maus-tratos, abuso sexual, abandono ou alienação parental. O desejo de partilhar com uma criança o amor, o carinho e o cuidado, tem, ao revés, o condão de construir, de curar.



Valendo-me de uma interpretação aberta e pluralista dos dispositivos atinentes à matéria e da forma dedutiva de raciocínio, tenho como legítima entidade familiar a união dos requerentes, e, em via indissociável, legítimo o direito à parentalidade homoafetiva que perseguem.



Não proclamar tal pretensão corresponderia a uma usurpação principiológica da dignidade da pessoa humana e da cidadania (art. 1º, II e III, CF/88), e dos direitos fundamentais à igualdade (art. 5º, caput e I, CF/88), liberdade, intimidade (art. 5º, X, CF/88), proibição de discriminação (art. 3º, IV, CF/88), ao direito de se ter filhos e planejá-los de maneira responsável (arts. 5º, caput e 226,  parágrafo 7º, da CF c/c art. 2º da Lei nº 9.263/96) e, por fim, da própria matriz estruturante do Estado Republicano de Direito: a democracia.



Ainda, seria ato atentatório ao sistema constitucional posto, que confere ao Supremo Tribunal Federal a chancela de guardião da Carta Maior e ato de incongruência à recente decisão com efeito erga omnes e vinculante já vergastada neste decisório (julgamento conjunto - ADPF 132/RJ e ADI 4.277/DF) e repisada por este próprio Juízo de Direito em outros julgados que guardam similitude ao presente, como se deu na sentença prolatada nos autos do Pedido Administrativo de Conversão de União Estável em Casamento dos próprios requerentes:



“Com efeito, decorridos 23 (vinte e três) anos da promulgação do texto constitucional, me parece imperioso que se inclua na esteira das entidades familiares essa nova modalidade de configuração familiar, mantida por pessoas do mesmo sexo, haja vista, dentre outras razões já esposadas, que estas se fundam, igualmente, nos pilares da afetividade.



Porém, não me parece razoável, à luz da hermenêutica, das considerações históricas, ideológicas, econômicas, políticas e sociais do Estado Brasileiro, que aos homoafetivos seja resguardado, tão somente, o direito de ver reconhecidas suas uniões, que, aprioristicamente, são estáveis, nos requisitos e formas da lei.



Aqui, em prol de uma “falsa segurança jurídica”, estar-se-ia criando um problema tão danoso quanto ao anterior, pois mitigações seriíssimas aos direitos fundamentais dos homoafetivos (igualdade, liberdade, intimidade, não discriminação etc.) continuariam a ser perpetradas, confinando-os ao constante estado de ameaça de lesão, pelo próprio Estado Democrático de Direito, por mais contra-senso que o seja!



Isto porque, o próprio Estado já previu, no bojo de seu sistema, a facilitação da progressão do vínculo precário de afeto (uniões estáveis) ao vínculo institucionalizado (casamento), em prol da verdadeira e mais abrangente segurança jurídica dos nubentes, no atendimento aos seus direitos patrimoniais, previdenciários, sucessórios, de procriação, adoção, etc.



Ao ditar a facilitação, o Estado busca plasmar caracteres sociais, a fim de intensificar sua própria força normativa e garantir a fruição de direitos de diversos matizes aos seus cidadãos, seja qual for a forma que optem em desenvolver suas afetividades.

(...)

Desta forma, estaremos diante da positivação e concretização de um catálogo de direitos fundamentais, cuja tutela vem sendo negligenciada aos homoafetivos pela esteira das décadas.”



Ademais, o que se descortina pelas entrelinhas pulsantes desses autos, salta aos olhos e enternece o coração.



É vívido e clarividente o laço afetivo que envolve os requerentes e a menor, que sujeitos as mais brutais formas de opressão e limitações de diversos matizes, não sucumbiram ao sonho de se sagrarem pais.



Unidos pelo amor que inflamou suas vidas, romperam grilhões, paradigmas e as próprias limitações de seus corpos, que por serem humanamente limitados, não puderam abrigar os desejos da alma, que urgia por gerar sua extensão nesse mundo na figura humana de um filho.



Pela junção do amor pluralista com a ciência, projetaram e conceberam uma filha, a qual almejam tão somente plasmar com seus nomes, a fim de que possam nutri-la ao longo da vida com o cuidado paternal - que todo bem agrega e todo mal afasta.



Buscam e demonstram meios suficientes para criar essa criança no abrigo do amor, dotando-lhe de virtudes e da índole dos retos, para que possa, então, alcançar a liberdade, a autodeterminação e a felicidade em sua, ora tão embrionária, vida.



Negar guarida a essa constelação familiar, formada por pais homoafetivos e uma filha concebida pela fertilização em proveta, é relegá-los a um sofrimento indigno, socialmente imposto, com reflexos avassaladores às suas condições humanas e existenciais.



Tenho que incoerente seria ao Estado-Juiz legitimar, no plano jurídico, o exercício da conjugalidade homoafetiva e não reconhecer, por outro lado, o exercício da parentalidade. Revelar-se-ia discriminatório garantir o desempenho de ambos papéis, conjugal e parental, às famílias compostas de casais heteroafetivos em detrimento daquelas compostas por casais homoafetivos.



A presente decisão tem por escopo chancelar, juridicamente, o que no mundo dos fatos é irreversível, o exercício da coparentalidade homoafetiva, escolha já realizada pelos requerentes. 



O pleno exercício da parentalidade, revelado pelo cuidar, prover, educar não guarda relação com a identidade sexual, é inerente ao próprio ser humano.



Até mesmo a antiga concepção que ao pai era reservado tão somente o prover e à mãe o cuidado dos filhos, hodiernamente, se apresenta ultrapassada. Inúmeros são os exemplos de pais que fazem da prática do cuidar um objetivo de vida.



Em um mundo onde incontáveis pequenos seres humanos são privados do despertar de sentimentos nobres, como o amor, o afeto, agraciados são aqueles aos quais é permitida uma convivência saudável, verdadeira, edificante, experimentada no cotidiano em família. 



Por mais que as forças estéreis da resistência tentem turbar a tendência da teia social moderna, que, compassadamente, comporta novas formatações de relacionamentos interpessoais, tais iniciativas acabam relegadas ao insucesso.



Nem a força dos tribunais positivistas, nem o fundamentalismo irracional, nem as legiões de reacionários e seus brados falsamente moralistas, conseguem obstar essa nova e espantosa ordem das coisas.



Sob essa ótica e para o reforço das ideias, rogo vênia a ilustre representante do Ministério Público, Dr. Adalberto Mendes Pinto Vieira, para incorporar a este pronunciamento os seguintes excertos do seu parecer:



“Cabe, inicialmente, uma reflexão deste órgão ministerial, ciente de que esta decisão extrapola os limites internos da pretendida indicação de paternidade, enquanto entendimento jurídico e de prestação ministerial no sentido de, através, de uma atitude positiva, colaborar na construção de uma sociedade baseada no respeito à pessoa humana e nos princípios fundamentais desta República.”

(...)

“Estamos diante de um fenômeno jurídico no assentamento do registro e na certidão de nascimento da criança, que se constitui na dupla maternidade ou paternidade, posto que na filiação irá constar apenas o nome do casal constituído pelo par homoafetivo.



A situação apresentada faz-nos refletir sobre a necessidade de que a realidade fática seja acolhida, contemplada e disciplinada pelo universo do direito. Contrario sensu de que serviria o direito senão para disciplinar as relações humanas, estabelecendo regras de convivência e regulando direitos e deveres?”

(...)

“Tudo isto para que possamos afastar falsas premissas do nosso raciocínio, com a finalidade de ater-nos a questão fundamental da presente demanda: que se cinge a uma família, protegida pelo Estado, na busca da sua completude com a constituição de prole, envolvendo a filiação de uma criança para dois pais, com registro pelo pai biológico e seu marido. Arremato a questão para incluir que o método científico escolhido foi o da fertilização in vitro (FIV) e procedimento de injeção intracitoplasmática do Espermatozoide denominada I. C. S. I. , com transferência para o útero de substituição, com procedimento regulado pela Resolução CFM nº 1.957/2010, e seu Anexo Único.



O casal homoafetivo escolheu dar a vida a seus filhos, através desse método conceptivo avançado do útero substituto, com técnica autorizada pelo Conselho Federal de Medicina, constando o nome do pai biológico M. A. A. na Declaração de Nascido Vivo nº ... (fls. 09).



O casal, valendo-se da autonomia de sua vontade (art. 5º, caput, da CF), uma vez que tinha em comum o sonho de ter filhos, ante a impossibilidade biológica de gestar, entregou a missão a uma parenta, A. L. D. S. O sêmen do primeiro requerente, M. A. S. A., fertilizou óvulos de doadora anônima, originando embriões, que um pouco desenvolvidos, foram transferidos para o útero de A. L. D. S., que por sua vez levou a gestação a um termo feliz, resultando no nascimento de M. T.



Estes são os contornos singulares e especiais da demanda apresentada: o fruto da junção biológica dos espermatozoides de M. A. A., com os óvulos de uma doadora anônima, cuja identidade não será conhecida, gestados no útero substituto de A. L. D. S., e que W. A. A., cônjuge daquele, busca assumir conjuntamente a paternidade.



Não se trata de fato de uma ‘MÃE’, mas sim, de uma DOADORA anônima e de uma pessoa que ofereceu seu útero em substituição, constituindo estas duas situações o aspecto singular ao caso. A dupla paternidade, fruto do afeto do par homoafetivo, o aspecto especial. O amor que gera, impulsiona a vida e concretiza os sonhos, é único e exclusivo do par formado por M. e W.



Foi estabelecida uma situação de fato e sem retorno. O casal valeu-se de método avançado da medicina, que possibilitou o nascimento de M. T.”



Chegou o tempo em que se faz necessário por dúvidas em nossas antigas certezas. Há que se resignificar a realidade social. Traçar novos paradigmas.



Finalizando e sob o aspecto formal, observo que o pedido veio instruído com todos os documentos indispensáveis ao seu acolhimento, quais sejam, Declaração de Nascido Vivo nº 30-56830128-7; Certidão de Casamento; Termo de Consentimento, por instrumento particular e público; Declaração do Centro de Reprodução Humana, pelo que se atesta a regularidade formal do pleito.



Traçado esse panorama, e no cotejo do acervo fático-probatório, verifico a inexistência de qualquer irregularidade formal e/ou fatos obstativos à pretensão que ora se persegue.

           

Conforme fortemente repisado no presente corpo sentencial, a aludida pretensão encontra fundamentação no Preâmbulo Constitucional; nos Princípios da República (art. 1º, II e III); nos Direitos e Garantias Fundamentais, quais sejam, a igualdade (art. 5º, caput, I), liberdade, intimidade (art. 5º, X) e proibição da discriminação (art. 3º, IV); no artigo 226, §§ 1º, 3º, 4º, 5º e 6º, todos, da Constituição da República; na Decisão do STF na ADI 4277 e na ADPF 132, acolhida como ADI e, por fim, na Resolução do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, destinada a promover a igualdade dos seres humanos, sem distinção de perfil sexual, em 17/06/2011, da qual o Brasil é signatário.



À vista do exposto e a livre manifestação das partes e os requisitos exigidos pelos arts. 29, I, e 50 a 66, da Lei nº 6.015/73, nos termos do Decreto nº 7.231/2010, e no Código de Normas dos Serviços Notariais e de Registro do Estado de Pernambuco, Provimento nº 20, de 20/11/2009 (DJE 30/11/2009), determino a abertura e lavratura do assentamento do registro de nascimento de M. T. A. A., nascida em 29.01.2012, as 00h44m, do sexo feminino, no Hospital Esperança Ltda, natural do Recife, Estado de Pernambuco, filha de M. A. A. e de W. A. A., tendo como avós paternos, por um lado, M. P. D. S. e T. A. D. S., e, por outro, de S. R. D. A. e M. J. S. D. A., respectivamente.



Observe-se o segredo de justiça quanto aos documentos da presente habilitação.



Intimem-se os requerentes e dê-se ciência ao Ministério Público. Registre-se.



Após as expedições necessárias, ao arquivo.



Recife, 28 de fevereiro de 2012



CLICÉRIO BEZERRA E SILVA

                     - Juiz de Direito -



[1] Neologismo criado em 1997 pela Associação de Pais e Futuros Pais Gays e Lésbicas (PPGL), em Paris, para nomear a situação na qual pelo menos um adulto que se autodesigna homossexual é (ou pretende ser) pai ou mãe de, no mínimo, uma criança, a partir da soma do radical “homo” com a palavra de origem anglófona "parentalidade" – parenthood (Simone Perelson, Rev. Estud. Fem. vol.14 no.3 Florianópolis Sept./Dec. 2006)
[2] Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para uma interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Tradução: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Editora Sérgio Antônio Fabris, 1997. p. 10
[3]http://www.direitohomoafetivo.com.br/uploads_trabalho_tese/o_direito_%E0_homoparentalidade_cartilha_sobre_as_fam%EDlias_constitu%EDdas_por_pais_homossexuais..pdf

domingo, 21 de agosto de 2011

UMA CARTA DE SATISFAÇÃO - 26º Tabelionato de Notas de São Paulo-SP

Recentemente, Adalberto e Ricardo, clientes de uma escritura de união estável, converteram em casamento a sua escritura. Moradores de Olinda, em Pernambuco, foram pioneiros na região nordeste.

Deles recebemos a mensagem abaixo, um reconhecimento a todos os notários que desbravaram.

“É sempre bom poder retomar algum contato, especialmente para agradecer.

Estamos escrevendo, pois os senhores com o seu trabalho pioneiro muito contribuíram para o reconhecimento da igualdade de direitos dos cidadãos desta República. De uma forma muito simples, apenas cumprindo com o seu ofício, despido de preconceitos. A dedicação da Srta. Patrícia Rosa, com o vai e vem de minutas com correções e acréscimos.

Muita coisa mudou desde aquele 23.06.2010, quando aí estivemos para oficializar a nossa convivência afetiva através de uma Escritura Pública. Estávamos acompanhados dos nossos familiares, inclusive da pessoa mais velha da família, Albenha, um senhora de 75 anos que não mediu esforços para empreender a viagem de Fortaleza até São Paulo, embora já doente (faleceu recentemente em 08.06.2011).

A escritura aí lavrada serviu de base para a conversão em casamento de nossa união estável. Foi o 6º do país, e o 1º do norte/nordeste.

Estamos felizes não apenas pelo casamento, porém igualmente pelo reconhecimento de nossos direitos civis.

Gostaríamos de repartir esta alegria com os senhores e com todos os demais que compõem o 26º Tabelionato de Notas.

Recebam o nosso agradecimento e reconhecimento que é expresso de todo o coração.

Parabéns pelo bem que vocês conseguiram fazer pela sociedade brasileira.

Enviamos em anexo, cópia do parecer do Ministério Público e da sentença (são documentos públicos e estão divulgados na internet).

O trabalho dos senhores rendeu frutos, muitos frutos…

Que o Pai, que nos ama a todos igualmente, abençoe todos vocês e suas famílias”.

Adalberto e Ricardo

O CASAMENTO HOMOAFETIVO NO BRASIL – Christiano Cassettari*

Como é sabido, no dia 05 de maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal ao julgar as ADPF 132-RJ e a ADI 4277 reconheceu, de forma unânime, a aplicação analógica das normas da união estável heterossexual para a união estável homossexual ou homoafetiva.

Essa decisão do STF fez com que todos os direitos que são dados aos companheiros heterossexuais em nosso sistema legislativo sejam estendidos às pessoas que vivem em união estável homoafetiva.

Para se ter a união estável homoafetiva, deve-se preencher os mesmos requisitos para se constituir a união estável heterossexual, ou seja, a convivência pública, duradoura e contínua com o objetivo de constituir família, conforme o art. 1.723 do Código Civil, que foi amplamente discutido pela suprema corte nesse julgamento histórico.

Para reforçar que a decisão deveria ser cumprida amplamente por todos, o Presidente do STF, Ministro César Peluso, enviou, em 09 de maio de 2011, a todos os Tribunais de Justiça do país, o ofício 81/P-MC, em que noticiava o julgamento que deu ao art. 1.723 do Código Civil interpretação conforme a Constituição, para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união pública, duradoura e contínua entre pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar”, entendida esta como sinônimo perfeito de família. Ainda, no mesmo ofício, o Ministro expressou que o reconhecimento da união homoafetiva deve ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva.

Por conta desse ofício, os cartórios estão recebendo vários pedidos de conversão de união estável heterossexual em casamento, por força do que determina o artigo art. 1.726 do Código Civil, que estabelece:

Art. 1.726. A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil.”

Por força do citado dispositivo, e do mencionado ofício do STF, os cartórios de Registro Civil de todo o país estão recebendo esses pedidos e encaminhando para as corregedorias locais para que decidam se podem converter a união homoafetiva em casamento, ou já recebendo sentença nesse sentido nos locais em que as partes devem ingressar com uma ação judicial em vara de família para obterem tal autorização.

Já há várias decisões judiciais em todo o país, em processos que o Ministério Público sempre se manifestou favoravelmente, que autorizam a conversão da união homoafetiva em casamento.

O primeiro foi em Jacareí (SP), o segundo em Brasília (DF), o terceiro em São Bernardo do Campo (SP) e o quarto em Recife (PE).

Porém, em razão dessa possibilidade já ter se tornado uma realidade, existem outros dois precedentes importantes de habilitação para o casamento de duas pessoas homossexuais, que não viviam em união homoafetiva, nas cidades de Jardinópolis (SP) e Cajamar (SP), sendo que nessa última a celebração do casamento se dará somente em outubro vindouro.

Concordamos com essa possibilidade, haja vista que se os homossexuais podem se casar, convertendo a união estável homoafetiva em casamento, devem, também, poder casar independentemente de viverem previamente em união estável, em veneração ao princípio da isonomia, consagrado no art. 5º, caput, da Constituição Federal, pois as pessoas que estão em situações iguais (homossexuais), não podem ser tratados de forma desigual (quem vive em união homoafetiva casa e quem não vive está proibido).

Ademais, cumpre salientar que não há nenhum artigo no Código Civil que estabeleça ser a diversidade de sexo um pressuposto do casamento. Esse requisito sempre foi colocado pela doutrina (e não pela lei), em razão do costume histórico exigir tal requisito. Para se comprovar isso, cumpre salientar que nos artigos que tratam da invalidade do casamento, 1.548 (casamento nulo) e 1.550 (casamento anulável), não se faz nenhuma menção ao pressuposto da diversidade de sexo.

Porém, de todos esses casamentos noticiados, o de Pernambuco chamou a nossa atenção.

Em sentença proferida pelo juiz de Direito da Primeira Vara de Família e Registro Civil da Comarca do Recife, Clicério Bezerra e Silva, a capital pernambucana foi a primeira das regiões Norte e Nordeste a sediar o ato jurídico que validou um casamento homoafetivo, no dia 02 de agosto de 2011.

No caso em tela, o casal mantinha uma união estável homoafetiva desde o dia 10 de outubro de 1998, e em dezembro de 2010 casaram-se na Conservatória do Registro Civil de Lisboa, Portugal, país que admite que esse tipo de casamento desde 2001 com a Lei da União de Facto.

Por esse motivo, poderia o casamento homoafetivo, realizado em Portugal, ser registrado no cartório do 1º Ofício da Capital do Estado onde residiam o casal (Recife), por força do art. 1.544 do Código Civil, vejamos:

“Art. 1.544. O casamento de brasileiro, celebrado no estrangeiro, perante as respectivas autoridades ou os cônsules brasileiros, deverá ser registrado em cento e oitenta dias, a contar da volta de um ou de ambos os cônjuges ao Brasil, no cartório do respectivo domicílio, ou, em sua falta, no 1º Ofício da Capital do Estado em que passarem a residir.”

Mas, para que isso fosse possível, deveria o casamento realizado em Portugal ter sido autenticado pelo cônsul brasileiro em Lisboa, o que não ocorreu no caso em tela, consoante determina o art. 32 da Lei de Registros Públicos, a saber:

“Art. 32. Os assentos de nascimento, óbito e de casamento de brasileiros em país estrangeiro serão considerados autênticos, nos termos da lei do lugar em que forem feitos, legalizadas as certidões pelos cônsules ou quando por estes tomados, nos termos do regulamento consular.”
Assim, correto o procedimento adotado pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco, considerando a prévia união estável do casal, ter convertido-a em casamento, já que o registro nos moldes do art. 1.544 do Código Civil não pôde ser feito, em razão da ausência de autenticação consular na certidão expedida pela Conservatória Portuguesa (Registro Civil do país).

Porém, entendemos que esse caso deve servir de alerta aos registradores civis de todo o país, já que no exercício da sua função serão requisitados não apenas para converterem união homoafetiva em casamento, ou para realizarem casamento de pessoas do mesmo sexo, mas, também, para registrarem casamento homoafetivo celebrados em outros países, já que os mesmos são realizados em vários países: África do Sul, Argentina, Bélgica, Canadá, Espanha, Islândia, México (somente na Cidade do México), Noruega, Países Baixos (primeiro país do mundo a legalizar) e Portugal.

Nos EUA somente alguns estados permitem o casamento homoafetivo (Connecticut, Iowa, Massachusetts, Nova Hampshire, Vermont, Washgington D.C e Nova York) e em Israel o mesmo não é permitido, mas é possível registrá-lo para ganhar efeitos civis, quando realizados no exterior.

*O Autor é Doutorando em Direito Civil pela USP; Mestre em Direito Civil pela PUC-SP; Diretor Cultural do IBDFAM-SP e Autor do livro “Elementos de Direito Civil” pela Ed. Saraiva.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

SEGUNDO CASAMENTO HOMOAFETIVO EM PERNAMBUCO

Vida moderna

TJPE oficializa segundo casamento entre pessoas do mesmo sexo

POSTADO ÀS 18:46 EM 18 DE Agosto DE 2011

A Primeira Vara de Família e Registro Civil da Comarca do Recife oficializou, nesta quinta-feira (18), o segundo casamento entre pessoas do mesmo sexo em Pernambuco com efeitos imediatos e sem necessidade de celebração.
A sentença proferida às 15h pelo juiz Clicério Bezerra e Silva converteu em casamento a união estável dos empresários Mailton Alves da Silva, 34 anos, e Wilson Ramos de Albuquerque, 39.

Os dois empresários elegeram o regime da comunhão parcial dos bens e passaram a usar os nomes de casados: Mailton Alves Albuquerque e Wilson Alves Albuquerque.
Os cônjuges iniciaram uma união estável em 26 de maio de 1997.

Conforme antecipou o Blog de Jamildo, a primeira sentença do Estado que oficializou um casamento entre pessoas do mesmo sexo foi proferida no dia 2 de agosto de 2011, também pelo juiz Clicério Bezerra da Primeira Vara de Família e Registro Civil da Capital. O promotor de Justiça do Ministério Público de Pernambuco (MPPE), Adalberto Mendes Pinto Vieira, e o técnico judiciário do TJPE, Ricardo Coelho, converteram em casamento a união estável iniciada em 10 de outubro de 1998.
Tal ato só se tornou possível após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em 5 de maio de 2011, que entendeu ser aplicável à união homoafetiva os efeitos da união estável, o que possibilitou aos requerentes a conversão da união em casamento.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

PRIMEIRO CASAMENTO HOMOAFETIVO EM PERNAMBUCO

ESTADO DE PERNAMBUCO
PODER JUDICIÁRIO

JUÍZO DE DIREITO DA 1ª VARA DE FAMÍLIA E REGISTRO CIVIL DA COMARCA DO RECIFE



PROCESSO DE HABILITAÇÃO DE CASAMENTO
REQUERENTES: Adalberto Mendes Pinto Vieira e Ricardo Moreira de Castro Coelho



SENTENÇA




                                                          Vistos etc.



ADALBERTO MENDES PINTO VIEIRA e RICARDO MOREIRA DA COSTA COELHO, amplamente qualificados nos autos, ingressam com pedido de CONVERSÃO DE UNIÃO ESTÁVEL EM CASAMENTO, sedimentando-se nas seguintes premissas:

Narram que mantêm uma união estável, sendo conviventes desde 10 de outubro de 1998, conforme sentença homologatória de escritura de convivência afetiva (fls. 13), desejando, desta feita, ver reconhecidos os direitos previstos no art. 226 da Constituição Federal, tendo por alicerce os princípios do respeito à dignidade da pessoa humana e a isonomia de todos perante a lei, sem distinções de qualquer natureza, inclusive de sexo.

Afirmam que, buscando conferir segurança jurídica ao seu vínculo afetivo, uma vez que, à época no Brasil, não se reconheciam legalmente as relações homoafetivas, contraíram casamento, em 10.12.2010, na Conservatória do Registro Civil de Lisboa, Portugal.

Aquele ato, todavia, não pode ser transcrito no Brasil em razão de não ter sido legalizado por autoridade consular.

Ocorre, entretanto, que o Supremo Tribunal Federal, em 05 de maio do corrente, entendeu ser aplicável à união homoafetiva os efeitos da união estável, o que possibilita aos requerentes a conversão da união deles em casamento.

Elegeram o regime da comunhão universal de bens e pleitearam a dispensa da publicação do edital de habilitação, tomando por base o parágrafo único do art. 1.527 do Código Civil, tendo em vista a sentença judicial anteriormente referida.

O pedido foi instruído com declaração de duas testemunhas, na qual atestam que os requerentes “não são parentes em grau proibitivo pela lei ou que tenham qualquer impedimento que obste a conversão de união estável em casamento de um com o outro”.

Pronunciando-se nestes autos, a representante do Ministério Público opinou favoravelmente ao pedido dos requerentes (fls. 22/42).

Findo este breve histórico da causa, principio meu julgamento.

Cuida-se de pedido de conversão de união estável em casamento, manejado por conviventes do mesmo gênero, com lastro em princípios magnos do sistema jurídico brasileiro e nos artigos 1.723 e 1.726 do Código Civil.

Cumpre-me, antes de adentrar no mérito, debruçar-me sobre as questões preliminares atinentes à causa, em que pese já haverem sido esmiuçadas e esgotadas, com preciosismo, pela zelosa representante do Parquet, tornando despiciendas quaisquer delongas que frustrem a análise do ponto de maior pungência contido nesses autos – a luta pelo reconhecimento do direito ao casamento por pessoas do mesmo sexo.

Quanto ao domicílio dos requerentes, infere-se, através do pedido de habilitação, que ambos residem no município de Olinda-PE.

Todavia, o artigo 76 do Código Civil disciplina que o servidor público tem domicílio necessário, considerando este o local em que exercer permanentemente suas funções.

Nesse caso, o requerente Adalberto Mendes Pinto Vieira exerce o cargo de Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Pernambuco, com exercício de suas atividades no Fórum Rodolfo Aureliano, Ilha Joana Bezerra, sede no município de Recife-PE (fls. 21), enquanto o outro requerente, Ricardo Moreira de Castro Coelho, ocupa o cargo de Técnico Judiciário no Tribunal de Justiça de Pernambuco, com exercício de suas funções no Fórum Thomaz de Aquino, também com sede em Recife-PE (fls. 22).

Deste modo, verifica-se a plena competência do Cartório do 7º Distrito Judiciário da Comarca do Recife para processar a presente habilitação, uma vez que, em tais casos, inexiste na lei local de organização judiciária a indicação expressa de uma determinada serventia extrajudicial.

No tocante ao casamento realizado em Portugal, na data de 10 de dezembro de 2010 (fls. 17), é imperioso destacar que ele não está apto a produzir efeitos no Brasil, posto que até a presente data o ordenamento jurídico pátrio não contempla o casamento de pessoas do mesmo sexo, não sendo possível o seu registro no país.

Esse é justamente o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, exposto na seguinte decisão:
“...Competente a autoridade que prolatou a sentença, citada regularmente a parte e transitado em julgado o decisum homologando, acolhe-se o pedido, por atendidos os requisitos indispensáveis à homologação da sentença estrangeira que não ofende a soberania ou a ordem pública.
A existência do casamento realizado no exterior independe do traslado do assento respectivo no registro civil brasileiro, exigido apenas quando se pretende que produza efeitos no país (Lei dos Registros Públicos, artigo 32).
O Decreto nº 3.598, de 12 de setembro de 2000, em seu artigo 23, dispensa de consularização ou de qualquer formalidade os documentos públicos franceses quando tenham de ser apresentados no território brasileiro.
Ressalva-se a homologação no tanto referente aos alimentos e à guarda e visitação dos filhos menores do casal, objeto de revisão em decisão proferida no Brasil após a prolação da sentença estrangeira, pena de violação do princípio da soberania.
Pedido de homologação de sentença estrangeira parcialmente deferido.” [1](grifos meus)

Nesse sentido é bastante esclarecedora a informação disponível no sítio eletrônico do Consulado-Geral do Brasil em Buenos Aires:

“Para que possa ter validade no Brasil, o casamento celebrado no exterior, quando uma ou ambas as partes sejam detentoras da nacionalidade brasileira, deverá ser registrado em Repartição Consular brasileira.
O casamento celebrado entre pessoas do mesmo sexo não poderá ser registrado em Repartição Consular do Brasil, uma vez que não é previsto no ordenamento jurídico brasileiro.”[2] (grifo meu)

De outro ângulo, percebe-se que está afastada qualquer irregularidade na presente conversão, posto que os requerentes são as mesmas pessoas que contraíram matrimônio no exterior, não se caracterizando, dessarte, a bigamia.

Pelo exposto, diante do atual cenário, convenço-me de que não há alternativa aos requerentes senão utilizar-se do presente pedido de conversão de união estável em casamento, à míngua de legislação específica.

Pugnam, afinal, pela dispensa do pedido da publicação do edital de proclamas, com fulcro no parágrafo único do art. 1.527 e no art. 1.726 do Código Civil e em face do reconhecimento judicial da união estável, conforme sentença homologatória de fls. 13.

A publicação do edital de proclamas tem por objetivo conferir publicidade ao procedimento. Contudo, existem situações em que pode haver a dispensa do ato.

Sobre a matéria, trago as palavras de Judson Mendonça Rezende:

“... Ainda existem outras hipóteses em que a excepcionalidade é o critério dominante. Será possível, portanto, em virtude da singularidade do fato ocorrido, além da supressão do prazo para a publicação dos proclamas do casamento, a permissão para a imediata realização do matrimônio. Dentre estas situações excepcionais, trataremos primeiramente sobre a união estável.

a) A entidade familiar descrita em lei como a união estável, configurada na convivência pública, contínua e duradoura, que tenha sido estabelecida com o fito em constituir família, tem assegurada a sua conversão em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil. Logo, sendo a relação em sua essência, pública, não tem que se falar em prazo para publicação de proclamas de casamento (...)”[3] (grifos meus)

Com efeito, em face da prévia existência de reconhecimento judicial da união estável (fls. 13), em que restou fixado o início da mesma em 10/10/1998, defiro o pedido de dispensa de publicação de proclamas de casamento, por entender que decorrido mais de 12 (doze) anos de uma relação ostensiva, torna-se desnecessária a publicação do edital, vez que plenamente satisfeito o requisito da publicidade.

Neste sentido:

“APELAÇÃO CÍVEL. CONVERSÃO DA UNIÃO ESTÁVEL EM CASAMENTO. A recepção pela Constituição Federal da união estável como entidade familiar e a determinação para que sua conversão em casamento seja facilitada (§ 3º do art. 226) repercutiu no art. 1.726 do CCB, estabelecendo que o pedido dos companheiros será feito ao juiz com conseqüente assento no Registro Civil, e na regulamentação desse procedimento pelos Provimentos nºs 027/03 e 039/03 da CGJ. O requisito para a conversão é, antes de mais nada, a comprovação da existência da própria união estável e, cumpridas as exigências previstas no mencionado Provimento, há que ser acolhida a conversão. A expressa dispensa de proclamas e editais em nada fere a verificação de fato obstativo ao casamento, pois eventuais impedimentos que inviabilizariam a realização do casamento por expressa disposição legal inibem, igualmente, a constituição da união estável (§ 1º do art. 1.723 do CCB). O casamento nuncupativo e o casamento por conversão da união estável têm em comum o fato de que exigem procedimento judicial exatamente como forma de suprir a inexistência das chamadas formalidades preliminares, consistentes no processo de habilitação matrimonial. E, por isso, neles é dispensada a publicação de editais e proclamas.  Assim, há que ser declarada judicialmente a convivência more uxório (em processo anterior ou incidentalmente) para que, homologada a conversão, seja lançado o assento do casamento no Cartório do Registro Civil, em livro próprio (B-Auxiliar). PROVERAM EM PARTE, À UNANIMIDADE. (Apelação Cível nº 70010060564, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Luiz Felipe Brasil Santos)”[4]  (grifo meu)

Assentadas as questões marginais atinentes ao presente processso habilitatório, utilizado como ferramenta processual de abertura da jurisdição administrativa deste juízo de família e registro civil, e não havendo outra questão processual a solver, passo ao esquadrinhamento da questão nuclear do pedido.

O objetivo deste feito administrativo é a conversão em casamento da união estável, já declarada como entidade familiar, por força da sentença que reconheceu como legítima a união mantida pelos requerentes há mais de 12 (doze) anos, de forma pública, contínua e duradoura, com o escopo de constituição de família.

Nesse intento, os requerentes manejaram pedido de conversão perante o Cartório de Registro Civil do 7º Distrito Judiciário da Capital - PE, devidamente instruído com os documentos entabulados no art. 1.525 do Código Civil, dos quais, destacam-se a Escritura Pública de Convivência Afetiva e a sentença homologatória de união estável, que dentre os efeitos dela decorrentes, veio a regular o regime patrimonial eleito pelos conviventes, a saber, o da comunhão universal de bens.

Em consectário ao pedido de conversão, os requerentes postulam que reste assinalada no assento registral a data de início da união estável, qual seja, 10 de outubro de 1998 e o sistema de regência eleito para regular as relações patrimoniais dos nubentes.

Ademais, pugnam pela manutenção dos nomes primitivos de solteiros.

Firmando minha convicção, começo por aclarar que o caso revelado pelos meandros destes autos, transcende a uma simples questão de usurpação principiológica da dignidade da pessoa humana e da cidadania (art. 1º, II e III, CF/88), e dos direitos fundamentais à igualdade (art. 5º, caput e I, CF/88), liberdade, intimidade (art. 5º, X, CF/88) e proibição de discriminação (art. 3º, IV, CF/88). Resvala, numa luminosa evidência, na matriz estruturante do Estado Republicano de Direito: a democracia.

Isso porque, numa sociedade democrática, na qual o pluralismo e a convivência harmônica dos contrários devem subsistir, não há espaço para prevalência de normas jurídicas que conduzam à interpretações polissêmicas e/ou excludentes dos direitos de minorias, como se dá no bojo das normas que restringem a legitimação estatal às relações puramente heteroafetivas.

É o que se opera no corpo dos preceitos jurídicos a seguir transcritos:

Art. 226 (CF) “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.”
(...)
§ 3º “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”

Art. 1.723 (CCB) “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre homem e mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura com objetivo de constituição de família.” (destaques meus).


A compreensão literal de tais dispositivos criará, com efeito, uma odiosa e confinante marginalização social de pares, que acabará por estrangular a democracia e, via oblíqua, o próprio Estado Pluralista de Direito.

Não mais se admite, que vencida a primeira década do século XXI, seja negada a uma parcela de cidadãos, sob as mais torpes justificativas, a plenitude de seus direitos.

Num Estado Democrático não há guarida para cidadãos de “segunda classe”, “quase cidadão” ou “meio-cidadão”, de quem são usurpados a fruição de direitos e garantias fundamentais, notadamente, o direito personalíssimo à livre escolha sexual e à constituição de família com acesso direto e/ou indireto ao casamento.

Nesse sentido há ser entendida a importância da existência de um Estado laico ou não-confessional, como se consolidou no Brasil com a da separação do Estado e da Igreja, desde o advento da República (Decreto nº 119-A, de 17/01/1890), haja vista que esta é uma premissa básica no acolhimento de todos os segmentos que compõem a sociedade brasileira na construção de “uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social” – como preconiza o preâmbulo da nossa Lei Maior.

Sustentar o contrário parece-me postura de quem lança os próprios olhos em sentido contrário, para não ter que enxergar os enfáticos e irmanados conceitos constitucionais de diversas matizes e seus efeitos irradiantes no campo da moral, da ética, da cultura e do próprio Direito.

A exemplo, dentre outros múltiplos possíveis, lanço o foco mais aceso ao preceito constitucional da igualdade, erigido à categoria de direito fundamental, que exorta que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza" (art. 5º, caput, CF/88) e que "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição" (art. 5º, I, CF/88).

Os conceitos constitucionais, em suas diferentes categorizações, foram encampados pela Carta Maior para que a nação brasileira possa caminhar, mais resoluta e facilitadamente, em direção a si mesma, de tempos em tempos, assinando o mais eloquente atestado de evolução democrática ao alcançar o status de uma civilização avançada, na qual preconceitos ancestrais, vertidos às minorias, dentre as quais se incluem os cidadãos homoafetivos, sejam combatidos e extirpados do seio social.

Pela fresta dos presentes autos, se percebe a busca de dois cidadãos pela pura e simples progressão de uma sociedade conjugal “precária” para um vínculo civil, com o fito de obter a devida tutela estatal para a nova entidade familiar, a homoafetiva, no perfil das demais constelações familiares - tidas como legítimas pela inteligência do ordenamento jurídico posto.
      
Estar-se a lidar, nos presentes autos e, principalmente, fora dele, com uma marcha social, vultosa e compassada, que urge por um denso processo de revisão do arcabouço jurídico brasileiro, com vista a garantir o direito personalíssimo à livre orientação sexual e à proclamação da legitimação ético-jurídica da união homoafetiva como entidade familiar.

Uma marcha encampada por todos aqueles que vivem a realidade social ativamente, na qualidade de destinatários das normas jurídicas e seus efeitos, ora pluralistas e democráticas, ora tiranas e excludentes.

Uma marcha de uma gente digníssima que se lança ao sol da liberdade, após décadas viventes sob o pálio sombrio da discriminação e do medo (de origens externas e internas) e que parecem ter ouvido a um chamado audível da autodeterminação e da busca pela felicidade.

Diante desse estado de coisas, o Poder Judiciário, no exercício de sua função de intérprete da lei, deve estar atento ao ruído, quiçá estrondo, das marchas sociais; ciente que “interpretar um ato normativo nada mais é do que colocá-lo no tempo e/ou integrá-lo na realidade social, na dicção brilhante do constitucionalista alemão Peter Häberle.[5]
    

Ao revés das incompreensíveis resistências sociais e institucionais, que se fundam em dogmatismos ultrapassados, me perfilo ao entendimento de que, qualquer dispositivo de lei que venha a constituir embaraço à plena fruição dos direitos fundamentais dos cidadãos, deva ser abolido do sistema jurídico vigente, por intermédio de um acurado procedimento hermenêutico, ou seja, através de uma interpretação pluralista e aberta dos dispositivos constitucionais que guardem correspondência com os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito.

Daí, palmilhar para um segundo desdobramento hermenêutico, no qual se utiliza a mesma forma interpretativa, na análise da validade e abrangência dos dispositivos contidos no plano infraconstitucional, que usualmente se configuram como normas de caráter procedimental, tendentes a tornar efetivo o exercício dos direitos constitucionalmente salvaguardados.

In casu, temos como ponto de largada a regra ínsita na Constituição Federal (art. 226, § 3º), que trata da questão das uniões estáveis, com reflexo direto nas uniões homoafetivas:

 “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...). § 3º. Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.
      
O referido artigo deve receber uma interpretação mais abrangente, à luz de seu próprio caput, que prestigia a proteção da família, e, especialmente, do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88), conforme preconiza a melhor hermenêutica constitucional, pluralista e procedimental aberta.
      
Nos termos do artigo 226, a família é a base da sociedade e terá especial proteção do Estado.

Para efeitos dessa proteção o conceito de família foi ampliado pelo texto de 1988, com vistas a reconhecer como entidade familiar a união estável entre homem e mulher, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

Muito embora, reste clarividente a preferência do constituinte pelo casamento, destaco a importância do “novo” preceito constitucional, intitulado “união estável”, ampliativo do conceito de entidade familiar.

Vê-se, em cognição clara, por intermédio dessa ação afirmativa do legislador em ampliar o conceito de entidade familiar, que a ratio legis foi a de privilegiar a família sócio-afetiva à luz da dignidade da pessoa humana.

Aqui, houve a supressão de um sistema ultrapassado, fundado no modelo patriarcal e hierarquizado (ínsito no Código Civil de 1916), que deu espaço a um novo sistema, que resguarda sob o albergue do Estado as múltiplas formatações de entidades familiares que nele coexistem, desde que estas restem atadas com o laço mais visceral que permeia as relações humanas – a afetividade.

Em decorrência, àqueles outrora marginalizados, receberam tratamento diverso e compensatório, passando, no plano prático, ao status de família, legitimadas e tuteladas pelo Estado.

Com efeito, decorridos 23 (vinte e três) anos da promulgação do texto constitucional, me parece imperioso que se inclua na esteira das entidades familiares essa nova modalidade de configuração familiar, mantida por pessoas do mesmo sexo, haja vista, dentre outras razões já esposadas, que estas se fundam, igualmente, nos pilares da afetividade.

Porém, não me parece razoável, à luz da hermenêutica, das considerações históricas, ideológicas, econômicas, políticas e sociais do Estado Brasileiro, que aos homoafetivos seja resguardado, tão somente, o direito de ver reconhecidas suas uniões, que, aprioristicamente, são estáveis, nos requisitos e formas da lei.

Aqui, em prol de uma “falsa segurança jurídica”, estar-se-ia criando um problema tão danoso quanto ao anterior, pois mitigações seriíssimas aos direitos fundamentais dos homoafetivos (igualdade, liberdade, intimidade, não discriminação etc.) continuariam a ser perpetradas, confinando-os ao constante estado de ameaça de lesão, pelo próprio Estado Democrático de Direito, por mais contra-senso que o seja!

Isto porque, o próprio Estado já previu, no bojo de seu sistema, a facilitação da progressão do vínculo precário de afeto (uniões estáveis) ao vínculo institucionalizado (casamento), em prol da verdadeira e mais abrangente segurança jurídica dos nubentes, no atendimento aos seus direitos patrimoniais, previdenciários, sucessórios, de procriação, adoção, etc.

Ao ditar a facilitação, o Estado busca plasmar caracteres sociais, a fim de intensificar sua própria força normativa e garantir a fruição de direitos de diversos matizes aos seus cidadãos, seja qual for a forma que optem em desenvolver suas afetividades.

Nessa mesma toada de intelecção, o artigo 1.723 e 1.726 do Código Civil devem ser interpretados de forma arqueável, a fim de trazer maior robustez à pretensão dos homoafetivos em ver suas vidas e relações familiares albergadas e reguladas pelas mesmas normas aplicáveis aos seus pares sociais, sem distinção ou discriminação de qualquer espécie.

Desta forma, estaremos diante da positivação e concretização de um catálogo de direitos fundamentais, cuja tutela vem sendo negligenciada aos homoafetivos pela esteira das décadas.

Sob essa ótica e para o reforço das idéias, cabe trazer a lume a recentíssima decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que corrobora o entendimento supra vergastado, e vem sendo apontada como indutora da catálise de entendimentos e avanços sobre a temática em nosso país, tendo em vista sua natureza abrangente, justíssima e dotada de eficácia erga omnes e efeito vinculante (art. 102, § 2º, CF/88).

No bojo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132, proposta pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, convertida na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.277, proposta pela Procuradoria Geral da República, o Plenário do STF teve a mais abrangente possibilidade de, pela primeira vez no curso de sua longa história, apreciar o mérito da controvérsia e dos consectários jurídicos que orbitam em torno da questão da união entre pessoas do mesmo sexo, que segundo preliminares do último Censo Demográfico de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), representam mais de 60.000 (sessenta mil) casais no país.

A referida ação teve por objeto o reconhecimento de direitos a servidores públicos homoafetivos, em equiparação à tutela jurídica igualmente conferida à união de servidores heterossexuais, no Estatuto dos Servidores Públicos do Estado do Rio de Janeiro.

Após realizar, denso e esmerado trabalho hermenêutico, na modalidade de interpretação constitucional do art. 1.723 do Código Civil, os ministros do STF decidiram, por unanimidade, excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar”, entendida esta como sinônimo perfeito de “família”. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva”, nos termos do voto do Ministro Relator Ayres Britto.

Extrai-se do voto do Ministro Ayres Brito lapidares ensinamentos:

“É que ninguém ignora o dissenso que se abre em todo tempo e lugar sobre a liberdade da inclinação sexual das pessoas, por modo quase sempre temerário (o dissenso) para a estabilidade da vida coletiva. Dissenso a que não escapam magistrados singulares e membros de Tribunais Judiciários, com o sério risco da indevida mescla entre a dimensão exacerbadamente subjetiva de uns e de outros e a dimensão objetiva do Direito que lhes cabe aplicar.”
(...)
“Há mais o que dizer desse emblemático inciso IV do art. 3º da Lei Fundamental brasileira. É que, na sua categórica vedação ao preconceito, ele nivela o sexo à origem social e geográfica da pessoas, à idade, à raça e à cor da pele de cada qual; isto é, o sexo a se constituir num dado empírico que nada tem a ver com o merecimento ou o desmerecimento inato das pessoas, pois não se é mais digno ou menos digno pelo fato de se ter nascido mulher, ou homem. Ou nordestino, ou sulista. Ou de pele negra, ou mulata, ou morena, ou branca, ou avermelhada. Cuida-se, isto sim, de algo já alocado nas tramas do acaso ou das coisas que só dependem da química da própria Natureza, ao menos no presente estágio da Ciência e da Tecnologia humanas.”
(...)
“Afinal, se as pessoas de preferência heterossexual só podem se realizar ou ser felizes heterossexualmente, as de preferência homossexual seguem na mesma toada: só podem se realizar ou ser felizes homossexualmente. Ou ‘homoafetivamente’, como hoje em dia mais e mais se fala, talvez para retratar o relevante fato de que o século XXI já se marca pela preponderância da afetividade sobre a biologicidade. Do afeto sobre o biológico, este último como realidade tãosomente mecânica ou automática, porque independente da vontade daquele que é posto no mundo como conseqüência da fecundação de um individualizado óvulo por um também individualizado espermatozóide.”

Com similar brilhantismo, se expressou a Ministra Carmem Lúcia:

“Observo, inicialmente, que a conquista de direitos é tão difícil quanto curiosa. A luta pelos direitos é árdua para ageração que cuida de batalhar pela sua aquisição. E parece uma obviedade, quase uma banalidade, para as gerações que os vivem como realidades conquistadas e consolidadas.”
(...)
“Contra todas as formas de preconceito, contra quem quer que seja, há o direito constitucional. E este é um tribunal que tem a função precípua de defender e garantir os direitos constitucionais. E, reitere-se, todas as formas de preconceito merecem repúdio de todas as pessoas que se comprometam com a justiça, com a democracia, mais ainda os juízes do Estado Democrático de Direito.”
(...)
“Para ser digno há que ser livre. E a liberdade perpassa a vida de uma pessoa em todos os seus aspectos, aí incluído o da liberdade de escolha sexual, sentimental e de convivência com outrem. O que é indigno leva ao sofrimento socialmente imposto. E sofrimento que o Estado abriga é antidemocrático. E a nossa é uma Constituição democrática.”

Anote-se que a aludida decisão se reveste de um duplo efeito.

Primeiro, para reconhecer a existência de mais um tipo de entidade familiar: o da união de pessoas do mesmo sexo.

Segundo, para estender os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis àqueles que optam pela relação homoafetiva – incluindo, aqui, o direito à conversão da união estável entre pessoas do mesmo sexo em casamento.

Nos últimos 2 (dois) meses que se sucederam, espocam pelo país, como efeito irradiante da decisão em comento, uma série de pedidos de conversão de união estáveis em casamento de pessoas do mesmo sexo, e, mais recentemente, pedidos diretos de habilitação ao casamento.

Rogo vênia a ilustre representante do Ministério Público, Dra. Fernanda Ferreira Branco, para incorporar a este pronunciamento os seguintes excertos do seu parecer:

“Os homoafetivos têm o direito à proteção do Estado às suas relações afetivas do mesmo modo que os heteroafetivos. Direito já consagrado recentemente, inclusive, pela Organização das Nações Unidas, em 17.06.2011, da qual o Brasil foi signatário, e que determina que ‘todos os seres humanos nascem livres e iguais no que diz respeito a sua dignidade e cada um pode se beneficiar do conjunto de direitos e liberdades sem nenhuma distinção’.
Por fim o casamento civil constitui ato de cunho eminentemente privado, embora protegido pelo Estado em decorrência das disposições referentes à família. A questão interessa apenas aos nubentes que buscam a segurança do ordenamento jurídico para proteção de sua relação afetiva. Esta relação não inclui os terceiros desinteressados.
 Determinaram, ainda, os Senhores Ministros a aplicação do disposto no § 2º, do artigo 102, da Constituição da República, com eficácia erga omnes e efeito vinculante. Não havendo espaço para a discricionariedade e obrigando os membros do Judiciário e da Administração Pública ao seu cumprimento.”

Em resumo e valendo-me de uma forma dedutiva de raciocínio, sedimentada no silogismo, arremato essa temática com a seguinte argumentação lógica:

O Supremo Tribunal Federal, em decisão com eficácia erga omnes e efeito vinculante, instituiu uma nova entidade familiar - a união homoafetiva - equiparando-a à união estável.

Ora, a Constituição Federal determina que seja facilitada a conversão de união estável em casamento.

Logo, a união homoafetiva também deve ter facilitada a sua conversão em casamento.

É, pois, o que faço nesta decisão.

Os requerentes buscam a conversão da sua união estável em casamento, lastreando o pleito (fundamento jurídico do pedido) na normatividade vigente sobre a matéria, ínsita no art. 226, § 3º, parte final, da Constituição Federal cumulada com os artigos 1.723 e 1.726 do Código Civil, e no novo entendimento sufragado pela Corte Suprema de nosso país, palmilhando em perfeito conduto para o alcance de seu desiderato, qual seja, contraírem casamento.

Ainda no plano das normas, evocam atos normativos expedidos no próprio Estado de Pernambuco, precisamente, o Provimento nº 20 de 20/11/2009, com as alterações previstas no Provimento nº 11 de 23/05/2011, expedidos pela Corregedoria Geral de Justiça, que disciplina com detalhamento a conversão da união estável em casamento, nos meandros deste ente federativo, senão vejamos:

Art. 693 - A conversão da união estável em casamento deverá ser requerida pelos conviventes ao Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais de seu domicílio.

Art. 694 - Cumpre aos conviventes apresentarem requerimento acompanhado de declaração de união estável, assim como acerca da inexistência de impedimentos para o matrimônio.

Art. 695 - No requerimento será indispensável indicação da data do início da união estável.

Art. 696 - Recebido o requerimento, este será autuado como habilitação, devendo constar dos editais que se trata de conversão de união estável em casamento.

Art. 697 - Após a expedição dos editais de proclamas e certificadas as circunstâncias, deverá ser aberta vista da habilitação ao Ministério Público para análise do aspecto formal.

Art. 698 - Decorrido o prazo legal do edital e tomada a medida do artigo anterior, será lavrado o assento da conversão da união estável em casamento, independentemente de qualquer solenidade, prescindindo o ato da celebração do matrimônio.

Art. 699 - O assento da conversão da união estável em casamento será lavrado no Livro "B", exarando-se o determinado no Art. 70, parágrafos 1º ao 8º e 10º, da Lei nº 6.015/73, sem a indicação do nome e assinatura do presidente do ato, anotando-se no respectivo termo que se trata de conversão de união estável em casamento, como regulada no Art. 8º da Lei nº 9.278/96.

Art. 700 - A conversão da união estável em casamento dependerá da superação dos impedimentos legais para o casamento, sujeitando-se à adoção do regime matrimonial de bens, na forma e segundo os preceitos da lei civil, bem como a todas as regras de ordem pública pertinentes ao casamento.

Art. 701 - O regime de bens será o estabelecido no respectivo contrato, não produzindo efeitos retroativos.

Art. 702 - Não constará na certidão de casamento convertido de união estável a data do início desta, salvo a requerimento dos contraentes ou por determinação judicial.

Art. 703 - As questões relativas à união estável devem ser resolvidas pelo Juiz de Direito da Vara da Família, observado o segredo de justiça.


O pedido de habilitação veio instruído com todos os documentos indispensáveis ao seu acolhimento, quais sejam, as certidões de nascimento dos requerentes; o duplo atesto testemunhal afirmando que os requerentes não são parentes em grau proibitivo ou que tenham qualquer impedimento que obste a conversão de união estável em casamento de um com o outro; declarações do estado civil atual, do domicílio e da residência atual dos contraentes;  Escritura de Convivência Afetiva lavrada em 23/06/2010; Certidão de Casamento realizado em Portugal, em 10/12/2010; e Sentença Homologatória de União Estável, pelo que se atesta a regularidade formal do pleito.

Os requerentes elegeram o regime da Comunhão Universal de Bens, sendo certo que tal opção foi contemplada quando da lavratura da Escritura de Convivência Afetiva, acostada às fls. 18/20 do presente procedimento.

Por conseguinte, a sentença judicial de fl. 13 homologou em todos os seus termos o pacto em comento, inclusive no que concerne ao regime de bens, estipulado no sexto item, constante à fl. 18-v.

Segundo lição de Salaverry:

“... Portanto, diante das considerações, no ato da conversão da união estável em casamento, optamos pela permanência do regime de bens escolhido pelos companheiros na constância da união (...)”[6]

Neste caso, conclui-se que o pacto antenupcial está representando pela escritura pública de convivência afetiva - ressaltando-se mais uma vez - homologada por sentença judicial.

Por fim, pugnam pela manutenção dos nomes primitivos de solteiros, o que resta convalidado por este juízo.

Traçado esse panorama, e no cotejo do acervo fático-probatório, verifico a inexistência de qualquer irregularidade formal e/ou fatos obstativos à conversão da união estável homoafetiva em casamento, que ora se persegue.
      
Conforme fortemente repisado no presente corpo sentencial, a aludida pretensão encontra fundamentação: no Preâmbulo Constitucional; nos Princípios da República (art. 1º, II e III); nos Direitos e Garantias Fundamentais, quais sejam, a igualdade (art. 5º, caput, I), liberdade, intimidade (art. 5º, X) e proibição da discriminação (art. 3º, IV); no artigo 226, §§ 1º, 3º, 4º, 5º e 6º, todos, da Constituição da República; na Decisão do STF na ADI 4277 e na ADPF 132, acolhida como ADI e, por fim, na Resolução do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, destinada a promover a igualdade dos seres humanos, sem distinção de perfil sexual, em 17/06/2011, da qual o Brasil é signatário.

Em arremate, reporto-me a um dos maiores poetas de língua portuguesa, Fernando Pessoa:

“O amor é que é essencial
O sexo é só um acidente.
Pode ser igual
Ou diferente.
O homem não é um animal:
É uma carne inteligente (…)”

À vista do exposto, presente a possibilidade jurídica do pedido (ADI 4277 e ADPF 132), observada a ausência de impedimento para contrair casamento, a livre manifestação das partes e os requisitos exigidos pelo art. 70 da Lei nº 6.015/73 e, ainda, a sentença que reconheceu a união estável mantida pelos requerentes, DECLARO CONVERTIDA EM CASAMENTO A UNIÃO ESTÁVEL EXISTENTE ENTRE ADALBERTO MENDES PINTO VIEIRA E RICARDO MOREIRA DE CASTRO COELHO, pelo regime da comunhão universal de bens, acolhendo-se o inteiro teor do que já fora anteriormente homologado judicialmente, dispensando-se, pois, o pacto antenupcial.

Por conseguinte, determino que, na lavratura da certidão de casamento conste o período da união estável de 10/10/1998 a 01/08/2011, para prevenir litígios futuros, sendo certo que este tempo anterior ao casamento continua valendo como união estável, posto que relevante para a definição dos direitos sucessórios e efeitos da meação.

Determino, por fim, que o presente ato de conversão de união estável em casamento, seja registrado no Livro B – Auxiliar, sem a indicação do nome e assinatura do presidente do ato, anotando-se no respectivo termo que se trata de conversão de união estável em casamento, com especificação do período de convivência da união estável (10 de outubro de 1998 até 01 de agosto de 2011) e a data do casamento (02 de agosto de 2011).

Os cônjuges manterão os nomes de solteiros.

Tratando-se esta sentença de ato judicial que substitui a celebração, a mesma tem efeitos imediatos. Assim, lavre-se o registro de casamento e providencie-se o necessário às averbações nos registros de nascimento dos requerentes.

Observe-se o segredo de justiça quanto aos documentos da presente habilitação.

Intimem-se os requerentes e dê-se ciência ao Ministério Público. Registre-se.

Após as expedições necessárias, ao arquivo.

Recife, 02 de agosto de 2011

CLICÉRIO BEZERRA E SILVA
                     - Juiz de Direito -


[1]             SEC 2.576/FR, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, CORTE ESPECIAL, julgado em 03/12/2008, DJe 05/02/2009 - Disponível em http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia
[2]             Disponível em http://www.conbrasil.org.ar/CONSBRASIL/casamento.asp
[3]             REZENDE, Judson Mendonça. Causas Excepcionais que Elidem a Publicação dos Editais na Habilitação para o Casamento e sua Impugnação.
[4]             Disponível em http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/consulta_processo.php?nome_comarca=Tribunal+de+Justi%E7a&versao=&versao_fonetica=1&tipo=1&id_comarca=700&num_processo_mask=70010060564&num_processo=70010060564&codEmenta=982579&temIntTeor=true
[5] Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para uma interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Tradução: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Editora Sérgio Antônio Fabris, 1997. p. 10
[6]             SALAVERRY, Ursula Ernlund. Aspectos Patrimoniais no Ato da Conversão da União Estável em Casamento.